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quarta-feira, 4 de maio de 2011

O GROTESCO!!!


(foto by Leka Massensini...)

A idéia de grotesco é fundamental para a visão bakhtiniana do carnaval, e é o próprio autor que estabelece uma das mais respeitadas epistemologias do grotesco. O termo grotesco surgiu no final do século XV, quando escavações feitas nas Termas de Tito, em Roma, revelaram um tipo de pintura desconhecida na época: figuras humanas que se fundiam com formas vegetais e animais, criando seres híbridos, onde inexistiam as fronteiras entre os reinos naturais, e um forte inacabamento era condição de existência. Tais pinturas foram chamadas de grottesca (do italiano grotta: gruta). Então, o grotesco, ou melhor, o que Bakhtin chama de “realismo grotesco” (o sistema de imagens da cultura cômica popular) é marcado pela extinção das fronteiras, pela aproximação radical do que é tido como distante, através do rebaixamento: “isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 1993, p. 17). O “alto” e o “baixo” possuem sentido topográfico: no alto está o céu, o espírito, a cabeça, o raciocínio; no baixo está a terra, o corpo, os órgãos genitais, o ventre e o traseiro, os instintos. No grotesco, o alto e o baixo são nivelados, ocupam o mesmo plano e perdem suas conotações positivas ou negativas (em última instância, tudo é investido de positividade, de potência, de vida), sendo constantemente invertidos e chacoalhados no frenesi carnavalesco. O exagero, o hiperbolismo, a profusão e o excesso são marcas estilísticas do grotesco.

O corpo carnavalesco é um corpo grotesco. Para Bakhtin, o corpo grotesco é um corpo essencialmente em movimento, aberto ao devir, suscetível, em constante metamorfose, e, por isso mesmo, sempre inacabado, incompleto, imperfeito. É um corpo em construção, em estado de criação, que absorve o mundo e é absorvido por ele (1993, p. 277), criado e criador, devorado e devorador. Um corpo ambivalente, duplo, “bicorporal”: carrega e manifesta em si potências de vida e potências de morte simultaneamente e com a mesma força. O corpo grotesco/carnavalesco ignora os próprios “limites” fisiológicos e se ultrapassa, é um corpo entre – não existem fronteiras entre dois ou mais corpos e entre o corpo e o mundo –, um corpo conectado, dissolvido, que não se restringe à sua individualidade e torna-se um corpo coletivo, cósmico, universal. O cânone moderno do corpo individual, único, como um ente isolado, fechado, acabado e delimitado, dotado de fronteiras semi-transponíveis começa a predominar, segundo Bakhtin (1993, p. 279-281), apenas a partir do século XVII.

Surge daí o interesse e a importância de partes e lugares do corpo por onde ele se ultrapassa, aberturas por onde se conecta (em via de mão-dupla) com os outros corpos e com o mundo: os órgãos genitais (com destaque para o falo), o nariz, o ventre, a boca, o ânus – regiões e orifícios que permitem o livre fluxo de vida e de morte. As excrescências também são valorizadas, pois são extensões do corpo, transmutações do corpo em elementos da natureza: fezes, urina, saliva, esperma, sangue, e demais humores contribuem para a diluição (e fecundação) do corpo no (e pelo) ambiente. Situações com forte acento escatológico como partos, coitos de toda espécie, comilanças, bebedeiras, mutilações, esquartejamentos e assassinatos são freqüentes, e explicitam a natureza ambivalente do corpo grotesco. É importante frisar que o corpo grotesco é um corpo coletivo, extenso e extensível, sempre renovado e, por isso mesmo, imortal e indestrutível.



Referência:
BAKHTIN, Mikhail. "A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais". São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da UnB, 1993.

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